Manter os jogos da NCAA é um atentado a toda uma geração de universitários-atletas
50 mil pessoas morreram apenas nesse último mês. Faz sentido seguir com o calendário?
Olá amigos, tudo bem?
Vocês leram a newsletter de ontem? Algumas pessoas talvez ainda estejam digerindo o incrível texto que a Isabella Mei trouxe para nós, com uma chamada extremamente importante para o respeito e valorização da mulher que cobre o esporte. Hoje o Beta Basket também vai ser um pouco mais opinativo. Sim, tem muito a ser dito nessa semana.
Nesse caso, o foco vai ser a NCAA e a insistência das autoridades do esporte universitário em manter a decisão de começar a temporada em meio à pandemia do COVID-19, cujos números voltaram a crescer exponencialmente. Antes de começar a ler, responda a você mesmo: é justo que os torneios de conferência para as jovens atletas aconteçam essa temporada?
Agora, continue a leitura e, ao fim, veja se ainda tem a mesma opinião.
Não é hora de entrar em quadra, por Roberta Rodrigues
Paige Bueckers (2020) e Azzi Fudd (2021), ao centro, ambas #1 prospects de seus respectivos anos, vão jogar pela University of Connecticut (Huskies) em períodos turbulentos e com menos oportunidades do que suas predecessoras
2020 tem sido um ano difícil. Mesmo que coisas boas tenham acontecido individualmente, certamente alguns desafios tornaram essas conquistas mais complicadas. A própria falta de mobilidade, o acesso restrito a recursos, as ordens de quarentena e o perigo constante de contrair uma doença cujas cura e vacina ainda são um grande ponto de interrogação se tornaram parte da tomada de decisões de qualquer pessoa, seja a nível familiar ou empresarial.
Para o fã de esporte, essa realidade ficou ainda mais ampla quando sua principal fonte de entretenimento foi interrompida bruscamente. E mesmo com a retomada de alguns campeonatos, a redução de jogos, times e atletas disponíveis deixou uma sensação amarga de que o “novo normal” é um tanto quanto diferente.
Nos Estados Unidos, a WNBA (basquete feminino) e a NWSL (futebol feminino) foram pioneiras na composição de um torneio em formato de bolha, com atletas, comissões técnicas e colaboradores estabelecidos em um único lugar fechado para entrada ou saída de qualquer pessoa que não estivesse em uma lista predeterminada. O modelo foi, então, copiado pela NBA e por alguns torneios europeus.
Mais recentemente, a NFL e braço da NCAA responsável pelo futebol americano decidiram por retornar suas atividades. Logo em seguida, a entidade universitária anunciou que o basquete feminino e masculino também voltariam à ação, com data marcada para 25 de novembro.
Quando a decisão acima foi tomada, os torneios de futebol americano ainda estavam no início, portanto era difícil de determinar os riscos de contaminação mantendo um campeonato nacional com necessidade de deslocamento em grande escala. Bom, não era necessariamente difícil, porém… o lado business literalmente escolheu pagar para para ver.
Preocupados com o retorno financeiro, dirigentes e patrocinadores pressionaram pelo retorno dos jogos. Não demorou muito e o Tennessee Titans experimentou em primeira mão o perigo de se expor a uma pandemia: a franquia teve um número assustador de 24 casos positivos de COVID-19 entre jogadores, comissão técnica e funcionários de operações. Como punição, a NFL emitiu uma multa no valor de $350k (R$1.750.000) ao julgar que o time não lidou com o vírus da maneira correta.
O grande problema é que punição não é sinônimo de prevenção. Pelo contrário, é apenas uma consequência a algo que não pôde ser evitado. Hoje, os casos seguem aumentando dentro da liga. Do dia 14 de agosto até hoje, 270 atletas e funcionários foram contaminados. Como resultado, a NFL emitiu uma série de protocolos que devem ser seguidos a partir do sábado, como o uso de máscara dentro de qualquer prédio de equipes, proibição de reuniões em lugares fechados e número limitados de pessoas nas academias oficiais.
Tudo isso não é mistério nem novidades. Autoridades da saúde não mudaram o discurso e pedem distanciamento social, uso de máscara, higienização constante e isolamento. Nada disso é fácil de ser seguido durante um campeonato esportivo. Por que, então, os torneios seguem acontecendo? A resposta prática é: CAPITALISMO.
A resposta menos radical e mais aceitável é: o mundo segue girando, dinheiro segue sendo movimentado e muito, mas MUITO dinheiro é injetado nos esportes profissionais masculinos. As empresas que investem nas grandes ligas dependem de jogos para ganharem retorno com visibilidade; os donos de franquias dependem de ingressos e merchandising para completar o rendimento anual; atletas precisam receber seus salários (ridiculamente altos, na opinião dessa que vos escreve); e emissoras ganham mais dinheiro se mais jogos são transmitidos.
É razoável que uma liga profissional con fins lucrativos de certo modo “force” que partidas aconteçam. Não é certo e eu, Roberta Rodrigues, não concordo com isso, pois as consequências vão muito além da propagação entre os que estão diretamente envolvidos com o esporte. Porém, considerando o mundo em que vivemos, existe uma explicação.
No lado da NCAA, portanto, simplesmente não tem como entender a gana e a pressa em dar início às partidas antes de uma vacina contra o COVID-19 ser disponibilizada nos Estados Unidos. Para início de conversa, a NCAA é uma empresa sem fins lucrativos, uma intermediadora entre atletas e universidades. Sua prioridade deveria ser proteger os estudantes, que, por sinal, não ganham um centavo de dólar para jogar.
A concepção de que todos os estudantes que fazem parte dos times de suas instituições recebem bolsa é completamente errada. É necessário esclarecer que muitos pagam com recursos próprios ou criam dívidas que levam uma vida inteira para serem pagas. Na verdade, uma das maiores crises nos Estados Unidos é chamada “student debt crisis”, que consiste em jovens recém-formados entrando em sua carreira profissional com mais de $100k de débito com o governo ou bancos.
As universidades da primeira divisão exigem valores altíssimos para admissão de alunos, até mesmo as estaduais (faculdade gratuita não é uma realidade nos Estados Unidos). Ganhar uma bolsa é super difícil e exige um rendimento praticamente já profissional logo no primeiro ano. É por isso que os garotos ficam apenas um ano na faculdade e já entram no draft: na NBA, vão ganhar dinheiro; como estudantes, vão dever dinheiro.
Elenco para a temporada 2020-2021 da University of Oregon (Ducks), de onde vieram Sabrina Ionescu, Satou Sabally e Ruthy Hebard
Agora, vejam só: a folha de rendimento da NCAA viu lucro de $600 milhões. Em abril, após o cancelado de todas as temporadas, o presidente da entidade destinou $225 milhões para estudantes da primeira divisão manterem suas bolsas. A segunda divisão recebeu apenas $13,9 milhões. A maior parte desse dinheiro vem do basquete masculino, com direitos de marketing e televisão, além de vendas de ingressos durante grandes jogos. Ou seja, o ano vai terminar com mais gastos do que lucro, o que é um desastre para qualquer empresa.
Ao mesmo tempo, é um certo gosto que os grandes executivos e patrões do basquete universitário ganham do que os estudantes, os quais são usados para lucro dos que raramente vão à quadra, passam como parte de sua realidade: a de perder dinheiro durante quatro anos antes de começar uma vida profissional já com uma dívida de seis dígitos.
Com tudo isso tendo sido dito, fica a pergunta novamente: é justo que a NCAA aconteça em maio ao coronavírus?
Algumas decisões foram tomadas nesses últimos dias: a primeira divisão do basquete masculino vai ser realizada em Indiana, em formato de bolha. A do feminino ainda não tem definição, mas já estão tomando as devidas precauções para prevenir que as mulheres sejam expostas ao COVID.
Sinceramente, é mais importante que a segurança e a saúde das atletas sejam mantidas, mas provavelmente a primeira divisão do basquete feminino da NCAA vai seguir o mesmo caminho da WNBA e WSNL no formato de bolha. O Beta Basket vai torcer para que nenhuma jogadora seja atingida negativamente e também vai cobrir os eventos.