Tudo sobre a relação WNBA e Europa - Parte 1
Por que jogadoras desgastam seu corpo para atuar em dois continentes?
**Antes de tudo, um esclarecimento: o Beta Basket tem como objetivo facilitar o acesso e o entendimento do basquete feminino. Vamos abordar essa relação entre WNBA e Europa de maneira bem didática a fim de informar quem já acompanha e instigar a curiosidade de quem não está familiarizado com a modalidade.**
Olá amigos, tudo bem?
Se você acompanha a newsletter semanalmente sabe que, depois da WNBA, a Europa é o palco principal do basquete feminino, com grandes nomes não só dos Estados Unidos, mas de vários outros países, inclusive do Brasil. Enquanto a ação no Velho Continente já começou há algum tempo, com os campeonatos regionais e nacionais em andamento, os dois maiores torneios do lado de lá — Euroliga e Eurocopa — não começam até a próxima semana.
Existem muito a se conversar sobre que acontece em quadra, mas isso vai ficar para a quinta-feira. Hoje vamos abordar os aspectos positivos e negativos extra-quadra para as atletas que não tem descanso entre uma temporada e outra.
Para começar, o Beta Basket traz, com exclusividade, uma entrevista com Fabio Jardine, agente licenciado pela WNBA e FIBA e fundador da First Pick Basketball Management. Sua agência gerencia a carreira de mais de 85 atletas nos cinco continentes, sendo 30 delas com passagem ou contrato em andamento na liga norte-americana e 12 ativas na rotação da Seleção Brasileira.
A colaboradora Rébeca Valente acrescenta à conversa com um texto sobre a importância na Europa na construção de visibilidade de atletas que não tem muitas oportunidades na WNBA. Além disso, temos a estreia brilhante de Isabella Mei, com uma crítica importantíssima sobre as disparidades que obrigam jogadoras a atuar o ano inteiro sem descanso.
A edição está longa, porém essencial! Não deixe de compartilhar e comentar.
Direto da fonte: Entrevista com Fabio Jardine sobre o mercado overseas
Existem muitas dúvidas, muitos mitos e muitas poucas respostas concretas sobre a relação das jogadoras e o mercado do pós-temporada da WNBA. Os campeonatos europeus têm muito menos cobertura, consequentemente assuntos extra-quadra no cenário europeu não recebem tanta atenção quanto o campeonato norte-americano. Por isso, o Beta Basket foi diretamente na fonte esclarecer as principais dúvidas.
O entrevistado é Fabio Jardine, agente com duas décadas de experiência no gerenciamento de atletas de basquete feminino.
Fabio Jardine com Erica Wheeler e Yvonne Turner, duas atletas gerenciadas por sua agência
Beta Basket: Por que jogar overseas ainda é tão atraente para atletas da WNBA mesmo com o novo acordo salarial que promete compensação mais alta?
Fabio Jardine: De maneira simples, a temporada da WNBA compreende apenas cinco meses de campeonato, enquanto a NBA dá muito mais tempo de jogo para seus atletas. E uma jogadora não pode ficar sete meses fora da quadra, então é natural que elas escolham atuar em duas praças. Claro, a parte financeira também pesa nessa decisão, porque quem não quer ganhar o dobro do seu salário?
BB: Você acredita que o upgrade financeiro no acordo salarial entre a WNBA e as atletas vai diminuir a quantidade de jogadoras que partem para a Europa?
FJ: Não, não vai mudar. Talvez para uma ou outra jogadora, mas no geral não. Exatamente porque se determinada atleta ganha $200 mil na WNBA e tem a chance de ganhar mais $150k ou $200k no ano, ela não vai deixar essa oportunidade passar. A não ser por lesão, claro.
BB: Por que existe uma diferença tão grande no salário da WNBA e da Europa?
FJ: Na verdade, devido ao novo acordo, hoje o salário oferecido na WNBA é bem parelho com o da Europa, em alguns casos até maior. Quando colocamos na balança, com as oportunidades de acordos de marketing nos Estados Unidos, para algumas atletas não vale a pena jogar em outro continente. Tudo depende da temporada e do clube que a jogadora vai defender.
BB: Seria possível o novo acordo salarial exercer certa pressão nos clubes europeus para que ofereçam mais dinheiro para as atletas ou uma coisa não influencia na outra?
FJ: Não, porque não existe conflito de calendário. Como a temporada europeia não bate com a dos Estados Unidos, os clubes não precisam se preocupar em tentar bater o salário da WNBA para convencer uma atleta a defender sua equipe. A liga norte-americana não exerce influencia nas decisões que são tomadas no outro continente. Na verdade, é o contrário. O fato de que vários times ofereciam mais dinheiro fez com que A WNBA corresse atrás para mudar isso.
A única preocupação, talvez, é com as jogadoras de top tier que lucram com acordos de marketing nos Estados Unidos não atuarem na Europa e isso atrair menos torcedores. Os clubes dependem de investimento da iniciativa privada ou pública, e para isso acontecer precisam encher ginásios, enquanto na WNBA existe uma distribuição de capital igualitária por equipe partindo da própria liga. Mas essa preocupação ainda não é uma realidade e é só um cenário negativo hipotético
Existem duas ou três equipes que tem dinheiro quase infinito e podem pagar salários milionários para as estrelas e distribuir o restante do seu faturamento entre os demais membros do elenco, mas isso é uma exceção.
BB: Falando nisso, ainda existem equipes que são bancadas por milionários, como era o Spartak Moscow do Shabtai Kalmanovitch?
FJ: Algumas equipes ainda são tão ricas quanto era o Spartak Moscow. Por exemplo, o Ekaterinburg é o clube mais rico desse meio, depois vem o Dynamo Kursk e o Fenerbahce, cujos recursos vem da empresa esportiva Fenerbahce e o basquete feminino é um dos seus produtos. Mas, de fato, o Ekaterinburg é o clube que tem dinheiro de sobra hoje.
Elenco da temporada 2018-2019 do UMMC Ekaterinburg
BB: E a Ásia? Como é o cenário financeiro por lá?
FJ: Na Ásia o país onde vale a pena ir pra fazer dinheiro é a China, porque a Coréia do Sul tem um teto salarial. Ainda sobre a China, três times de lá tem tanto dinheiro quanto o Ekaterinburg, mas não existe a mesma competitividade que a Europa porque essas equipes não disputam entre si.
BB: Na sua experiência, as jogadoras preferem ir para a Europa, Ásia ou Austrália?
FJ: As americanas adoram ir para a Austrália, mas não é onde elas fazem mais dinheiro. Então, na hora de tomar uma decisão, a prioridade é a Europa, depois a Austrália e então a Ásia
A visibilidade de jogar na Europa.
Aumento irregular
Em 2020, cada uma das 12 franquias da WNBA entrou em quadra 22 vezes, ou seja, uma dúzia a mais de compromissos a menos do que em 2019, quando a quantidade de partidas realizadas por time foi de 34. A ESPN transmitiu 37 e a CBS 40 jogos, cada.
Dos 264 confrontos realizados na temporada regular, 187 não foram transmitidas pelas emissoras parceiras da liga, o que leva à tenebrosa porcentagem de apenas 29% de cobertura nacional. Ainda assim, os 77 jogos na ESPN e CBS representam um aumento de 235% em comparação com os 23 do ano anterior.
A falta de disponibilidade da WNBA em cadeia nacional leva a outro problema: distribuição de tempo. Por exemplo: Washington Mystics, campeão em 2019, teve apenas 15 partidas acessíveis para o público americano geral; já o Seattle Storm, com a volta da dupla Bird-Stewart, teve 20 partidas transmitidas; o Atlanta Dream, último lugar em 2019, não contou com todo esse apoio da mídia, e no calendário liberado pela liga, teve 11 jogos no ar.
Put Women’s Sports on TV
“PUT WOMEN'S SPORTS ON TV” (Coloque esportes femininos na TV) foi um dos slogans mais adotados pelas jogadoras em 2020. Mais do que nunca, existe uma consciência geral de que colocar jogos na televisão significa mais visibilidade, o que consequentemente gera mais investimento.
A’ja Wilson vestindo a camisa da campanha “Put Women’s Sports on TV”
E os números crescem a cada ano como prova:
Mesmo competindo com NBA, NFL, NHL e MSL, a WNBA conquistou um aumento de 15% na audiência das Finais de 2020.
No dia 25 de julho, Seattle Storm x New York Liberty, confronto que abriu a temporada, alcançou o maior número de espectadores para uma partida inaugural desde 2016. A expectativa do confronto entre a veterana Sue Bird e a novata-estrela Sabrina Ionescu justifica essa estatística.
No mesmo dia, Los Angeles Sparks x Phoenix Mecury se tornou o jogo mais assistido da WNBA desde 2012 (617,000 espectadores).
Apesar de muitos dados positivos, a glória de ser assistida em cadeia nacional não é destinada a todos, como foi exemplificado acima com o Seattle Storm tendo 20 partidas transmitidas e o Atlanta Dream apenas 11. E é aí que entra a Europa.
Os campeonatos europeus são transmitidos pela internet, o que permite maior visibilidade. É lá que as rookies ganham tempo de quadra, estrelas recebem mais dinheiro e o fãs são contemplados com mais tempo para assistir o esporte de alta qualidade.
A FIBA Euroleague Women (Eurolia) é a maior competição de basquete da Europa. 16 times das mais variados partes do continente se encontram, a maioria com atletas da WNBA em seu elenco.
Além disso, atletas não vivem só de experiência em quadra e salários. Elas precisam de títulos.
Sue Bird e Diana Taurasi saciaram a sua sede de vitórias jogando na Rússia enquanto seus respectivos times passavam por um longo período sem vencer na WNBA. É claro que essas duas jogadoras não precisavam de mais visibilidade, elas já eram extremamente populares e a cara das suas franquias.
O especial da temporada na Europa é justamente isso: você pode ganhar títulos nos Estados Unidos, mas no Velho Continente novatas são titulares, e jogadoras europeias ganham tempo de quadra, o que não é padrão na WNBA.
“Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?”
Ter uma temporada boa na WNBA significa conseguir um melhor contrato e a possibilidade de jogar em um time/liga mais forte. O mesmo é recíproco no caminho oposto. Jogar em alto nível na Europa sinaliza scouts de franquias dos Estados Unidos e abre portas para aquelas que não tiveram tanta sorte no ano anterior ou nunca tiveram oportunidade de jogar fora de seu país.
Um exemplo de atleta da NCAA: Kelsey Plum (Las Vegas Aces)
Plum, foi draftada pelo San Antonio Stars em 2017 e no seu primeiro ano jogou 30 jogos, com médias de 8.5 pontos, 2.0 rebotes e 3.5 assistências.
No mesmo ano atuou pelo Fenerbahce (Turquia). Só na Liga Turca, jogou 27 jogos com médias de 12 pontos, 2.6 rebotes e 3 assistências. Já na Euroliga, jogou 17 jogos com médias de 8.6 pontos, 1.8 rebotes e 2.2 assistências.
De volta à WNBA em 2018, no novo Las Vegas Aces, jogou 31 jogos, com médias de 9.5 pontos, 2.4 rebotes e 3.9 assistências. Médias bem próximas de quando ela liberou o time até as semifinais em 2019.
Um exemplo de atleta cuja carreira foi toda pavimentada na Europa e gerou interesse da WNBA: Emma Meesseman (Washington Mystics)
Emma Meesseman começou sua carreira aos 16 anos na Bélgica, com o Blue Cats Leper e foi draftada pelo Washington Mystics em 2013 após anotar médias de 12,9 pontos por jogo com ESB Villeneuve-d'Ascq na temporada francesa de 2012-2013. À medida que cresceu em quadra, foi colocada de volta ao elenco do Spartak&K Vidnoe Moscow Region (que a emprestou ao Villeneuve) e ganhou mais tempo de quadra com o Washington Mystics. Seu destaque na WNBA garantiu um contrato com a super potência russa, UMMC Ekaterinburg.
Ou seja, a visibilidade na França a garantiu espaço na WNBA e seu protagonismo nos Estados Unidos a permitiu presença no maior clube europeu da atualidade.
As consequências de jogar year round
O jogo de basquete ocasiona um grande desgaste físico e emocional aos seus atletas, afinal são meses a fio de atividades intensas e jogos quase todos os dias durante uma temporada. É fato que um período de descanso seria necessário, certo? Não para todos. Os jogadores da NBA – a liga masculina norte-americana – têm um período de offseason para descansarem, enquanto os drafts e trocas acontecem. Já as jogadoras da WNBA continuam na luta depois que a temporada americana termina, não tendo a mesma sorte de descansar durantes os meses sem jogos.
É comum que grande parte das jogadoras da liga feminina viaje para os continentes europeu ou asiático para defender a camisa de times estrangeiros durante a Euroliga. As atletas fazem isso em uma forma de arrecadar mais dinheiro, por conta de salários mais altos, além de adquirirem táticas extras de jogo. Jogar year round – o ano inteiro, sem paradas – tem suas vantagens, porém é um processo desgastante mental e fisicamente que além de tudo pode ocasionar sérias lesões às atletas. Esse foi o caso da atual MVP das finais Breanna Stewart, do Seattle Storm, que rompeu o tendão de Aquiles em um jogo da EuroLeague em 2019, enquanto defendia o time russo Dynamo Kursk.
Ao jogarem no exterior em constante rotação entre uma temporada e outra, as atletas correm um risco maior de sofrerem lesões, pelo fato de não terem tempo suficiente de recuperação entre jogos da WNBA e a temporada europeia. Para o caso de lesões, seriam necessários cerca de quatro meses de descanso em caso de algum ferimento, segundo a head athletic trainer do Chicago Sky, Meghan Lockerby. O desgaste mental não fica para trás: estar a milhares de quilômetros de casa, longe da família e em um país estrangeiro com uma língua diferente também pesa na rotina das migrantes temporárias.
A liga feminina norte-americana ainda sofre com as questões salariais: enquanto LeBron James – com quatro títulos em sua 17º temporada de NBA – faturou $37.44 milhões de dólares na temporada de 2020, Sue Bird, veterana do Seattle Storm também em seu 17º período e também com quatro anéis de campeã, somou $215,000 dólares. Ambos atletas da liga americana, porém, um da masculina e a outra da feminina.
A jornada dupla feminina são se abstém nem entre as quadras de basquete. É por conta dessas disparidades entre as ligas que as jogadoras encaram temporadas duplas revezando entre o território americano e o overseas. Apesar de estarem adquirindo experiência, é injusto que as atletas tenham que se colocar em posição de risco para aumentarem seus salários e ganharem notoriedade.
Quase como um apelo: é preciso apoiar o basquete feminino. É preciso assistir aos jogos, apoiar as ligas e respeitar as atletas para que se tenham resultados que ajudem a preservar a saúde delas. Atletas saudáveis jogam durante mais tempo e melhor, trazendo para a liga uma qualidade ainda mais aprimorada que dá orgulho de acompanhar.